Obra de Bento XVI vai continuar a suscitar interesse e formar muitas gerações, diz especialista brasileiro
Papa Bento XVI durante audiências no Vaticano. | ShutterstockPor Natalia Zimbrão
16 de abr de 2024 às 09:52
Hoje (16), o papa Bento XVI completaria 97 anos. Ele morreu em 31 de dezembro de 2022, mas, “sua obra vai continuar a suscitar muito interesse e a formar ainda muitas gerações”, disse à ACI Digital o doutor em Sociologia Política e pós-doutor em Teologia, Rudy Albino de Assunção, especialista na obra de Bento XVI.
Para Rudy, “nós ainda, em alguns aspectos, assistimos só o começo do agravamento de muitas crises que ele [Bento XVI] apontou e tentou remediar” e, “como ele apresentou a fé de forma clara e objetiva, a sua obra vai continuar a ser um ponto de referência para todos aqueles que estão profundamente empenhados em uma contínua reforma da Igreja em termos de uma volta à fidelidade à intenção de seu fundador”.
Rudy Albino de Assunção, 40 anos, teve contato com o ainda cardeal Joseph Ratzinger, futuro papa Bento XVI, ainda na adolescência, no seminário. Ele entrou no seminário quando tinha de 12 para 13 anos. Passou dois anos na congregação dos Josefinos de Murialdo, em Orleans (SC), e depois oito anos no seminário diocesano de Tubarão (SC).
“A primeira vez que ouvi falar dele foi durante o meu ensino médio, eu tinha por volta de 15, 16 anos”, recordou, destacando que foi por meio de textos da revista italiana ‘30 Dias na Igreja e no Mundio’ (30 Giorni). Segundo ele, naquela época, “era uma das poucas literaturas que chegavam ao Brasil e o apresentavam de forma positiva”. Assim, quando passou a ler os textos de Ratzinger, começou “a perceber que o discurso sobre ele era muito contrastante com o discurso dele”, contou.
Já na Filosofia, Rudy teve contato com o livro ‘Rapporto sulla fede’, de Vittorio Messori, que no Brasil foi traduzido como ‘A Fé em Crise? O Cardeal Ratzinger se Interroga’. “Ali, eu vi uma visão de Igreja muito contrastante com o que eu via na prática no seminário, nas paróquias. Isso me fascinou tremendamente”.
Ele contou que, no seminário religioso, onde fez o final do ensino fundamental, era “ainda muito agrícola”, algo cultural do interior de Santa Catarina, onde “você não está muito preocupado com questões, digamos, ideológicas”, mas em “manter uma estrutura muito grande e com pouca gente”.
Quando entrou para o ensino médio, já no seminário diocesano, “a coisa muda um pouco, porque já sentia mais fortemente certa orientação teológica”. Era o final da década de 1990 e, segundo Rudy, “já havia um intervalo entre o auge da Teologia da Libertação e certa fase mais estacionária da sua influência”. Mas, seus “formadores foram formados no período da Teologia da Libertação”. “Então, no fim, não havia um discurso social aberto, porque não era a preocupação à época, mas os impactos da Teologia da Libertação na periferia, nos temas que ela colocava na periferia, era muito forte, como na Liturgia, na espiritualidade”.
Hoje professor, Rudy contou que sempre gostou de estudar e agradece à sua experiência no seminário por lhe ter proporcionado o contato com a Teologia. “Mas, de fato, algumas coisas eram nítidas, era um antiacademicismo, digamos assim, um anti-intelectualismo. Porque a imagem do padre era que tinha que estar nos meios populares e, se gosta de estudar, tinha o perigo de se tornar um padre de gabinete. Não havia uma cultura de estudo, você estudava apesar de. Tinha que tirar boas notas, passar de ano, mas não ser um padre intelectual, porque estaria longe do povo”. Segundo ele, “essa imagem popular era muito forte, exercícios de piedade intensa eram nitidamente desestimulados”.
Nesse ambiente e tendo contato com a obra e pensamento de Joseph Ratzinger, Rudy disse que para ele foi ao mesmo tempo “a dor de cabeça e o bálsamo, foi a ferida e o analgésico”. Primeiro, porque “você acaba destoando do movimento do grupo”. Por outro lado, “você sabe que está mergulhando em grandes coisas”. “Em Ratzinger eu ouvi falar de Agostinho, Tomás de Aquino, Henri de Lubac, Hans Urs von Balthasar, eu sou um fascinado pela teologia alemã. Eu nunca entraria nesse mundo da teologia alemã se não fosse ele. E, curiosamente, eu nasci em um contexto em que a cultura italiana e alemã estão muito presentes. Talvez isso tenha ajudado”, disse Rudy, natural de Gravatal (SC).
Segundo ele, quando entrou no seminário, “embora não tivesse mais a cultura de estudo, ainda tinha biblioteca”. Foi então que começou a “explorá-la” e a ler vários livros. Assim, quando teve seu primeiro contato com Ratzinger, “já tinha tateado muitas coisas sobre papas, sobre Igreja, sobre liturgia”. “De alguma forma, quando eu o li, as coisas começaram a fazer mais sentido, começou a ordenar na minha cabeça muitas das coisas que eu tinha lido de forma fragmentada”.
Alguns elementos contribuíram para a atração exercida por Ratzinger sobre Rudy. “Quando você é seminarista é muito comum você ser atraído por aspectos institucionais, porque você entra em um seminário e vê um cardeal... Quando você está no auge de sua juventude, você projeta em certas figuras o seu ideal, seu encantamento. O mais curioso é que Ratzinger chegou para mim e eu tinha outras figuras que poderiam cumprir esse papel, mas quando eu comecei a ler o que ele escrevia, sempre digo a mesma coisa, eu fui vencido pela força da Verdade. Porque o que ele dizia, me parecia de todo coerente e em consonância com aquilo que a Igreja acreditava”.
Ele contou que, embora não tivesse “crescido em uma paróquia progressista”, o padre também “estava longe de ser muito tradicional”. “Mas, era a fé batismal, aquela vida litúrgica”. Para Rudy, “aquilo que ele [Ratzinger] me apresentava me parecia uma grande elaboração coerente, verdadeira de coisas que eu vivi de forma simples e não elaborada pré-seminário. Então, quando vi algumas coisas no seminário que problematizavam o simples, sem solucionar e, na verdade, colocando a fé simples em um beco sem saída, eu via Ratzinger problematizando, apontando a complexidade da fé simples, mas sem me tirar dela. Ratzinger falou dessa fé dos simples. Então, ele, com sua erudição, me mostrou coerência da simplicidade da fé que eu já tinha aprendido”.
Além disso, destacou alguns pontos da história de Ratzinger que o atraem “de modo privilegiado”. “Ele dizia que a vocação dele foi determinada por duas coisas, primeiro pelo acesso progressivo ao conhecimento litúrgico, a liturgia foi muito importante para ele”, disse ressaltando que Ratzinger “sempre faz alusão à liturgia”. “Tanto que eu tenho um livro chamado ‘O Sacrifício da Palavra. A Liturgia da Missa Segundo Bento XVI’, porque toda sua obra ele faz alusão de alguma forma à missa, à liturgia, aos sacramentos, ele pensa a Igreja, ele pensa a Teologia a partir da liturgia. Como a minha inserção na Igreja se deu pela mediação litúrgica, isso foi importante”.
O segundo ponto, destacou, que “ele [Ratzinger] vai dizer é que o caminho do estudo, da intelectualidade, foi uma forma em que ele acabou discernindo a sua própria vocação”.
Com o tempo, Rudy foi se aprofundando e lendo “de forma lenta” a obra de Ratzinger. Um ano antes da eleição do papa Bento XVI, Rudy saiu do seminário. Depois de concluir o mestrado em Sociologia Política, decidiu que ia se “dedicar integralmente a estudar o pensamento de Bento XVI”. Foi organizador e co-autor de algumas obras sobre ele. Os primeiros livros dos quais foi autor foram publicados quando Bento XVI já era emérito. Além de “O Sacrifício da Palavra. A liturgia da Missa segundo Bento XVI”, Rudy é autor de “Bento XVI, a Igreja Católica e o espírito da modernidade. Uma análise da visão do papa teólogo sobre o mundo de hoje” e “A espiritualidade dos leigos à luz do magistério eclesial desde o Vaticano II”.
Para ele, seu trabalho “acabou se tornando não só um trabalho de busca pessoal de literatura sobre Bento XVI, mas de promover o acesso de outros à literatura dele sobre ele, porque eu sempre tive como princípio que não faço as coisas só para mim”.
“Fui seminarista, sei o valor de um bom seminarista com um bom livro na mão, o fruto que isso pode ter em uma paróquia. Eu nunca tive perspectiva de trabalho de massas, no sentido de fazer algo para alcançar milhares de pessoas. Acho que sou mediador para criar mediadores. Quero que um livro de Ratzinger chegue a pessoas que vão chegar a muito mais gente do que eu, por exemplo, o seminarista, que sei que daqui a cinco, seis anos, estará à frente de uma paróquia e aquela influência vai reverberar ou frutificar tremendamente”, acrescentou.
A relação de Bento XVI com o Brasil
Para Rudy Assunção, houve uma mudança da recepção da obra de Bento XVI desde que teve seu primeiro acesso aos textos de Ratzinger até os dias de hoje. “Há uma mudança sociológica na Igreja. Na década de 1960, o pouco que era publicado de Ratzinger no Brasil era recebido de forma muito positiva, inclusive por expoentes da Teologia da Libertação que depois o rejeitaram”, disse, ressaltando que havia resenhas sobre ele na Revista Eclesiástica Brasileira “extremamente positivas, elogiosas, apresentando-o como um teólogo que sabia transmitir a tradição da Igreja de forma muito moderna, muito aberta”.
Na década de 1980, disse, quando Joseph Ratzinger foi nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (1981 a 2005), “essa visão mudou radicalmente, porque ele foi apresentado como um inimigo da Igreja latino-americana”. “Então, década de 1980 e início da década de 1990 – primeiros cinco anos pelo menos –, essa imagem muito negativa persistiu”, declarou.
Foi com Bento XVI como prefeito da Doutrina da Fé que a Santa Sé publicou os documentos sobre Teologia da Libertação: “Instrução sobre alguns Aspectos da Teologia da Libertação”, em 1984, e a instrução “Libertatis conscientia – sobre a liberdade cristã e a libertação”, em 1986.
Na década de 1990, “já começou uma mudança progressiva, porque o cenário já não estava mais tão denominado pela Teologia da Libertação, mas houve um avanço da Renovação Carismática Católica e o Ratzinger sempre foi, junto com João Paulo II, um grande defensor dos movimentos eclesiais, dos novos movimentos eclesiais. Então, acho que isso também ajudou a mudar a percepção dele aqui, porque já havia o crescimento de grupos mais simpáticos”.
Ele ressaltou que, embora esses grupos que cresceram na década de 1990 não fossem “necessariamente ratzingerianos, porque mal conheciam sua obra, mas eram influenciados por João Paulo II e outras figuras” e também “olhavam criticamente a Teologia da Libertação”. “Então, já começa uma abertura para a figura dele”, disse.
Nos anos 2000, “é nítida que já há uma geração de João Paulo II, geração que não participou do [Concílio] Vaticano II, que não participou da reforma imediata, que não participou do auge da Teologia da Libertação”, disse, destacando que essa geração não se trata apenas de leigos, “mas, sobretudo, geração de seminaristas”. “No ano 2000, você já tem uma geração que não conheceu outro papa a não ser João Paulo II”, disse. Segundo ele, “esses que cresceram sob João Paulo II já têm uma consideração distinta da cúria romana, do papa, do Ratiznger. E, como disse, vem o movimento carismático com outro apreço pela liturgia, embora não com o rigorismo que se poderia esperar em alguns aspectos”.
Depois da eleição de Bento XVI, em 2005, “a faceta dele como teólogo volta a ser uma faceta muito positiva, porque começam a olhar as encíclicas sobre amor, esperança, fé”, disse Rudy, para quem, o pontificado de Bento XVI “é o ponto de virada mesmo para uma recepção mais positiva”.
O especialista na obra de Bento XVI também destacou alguns aspectos do papa que demonstraram sua preocupação “com a situação latino-americana” e, portanto, com o Brasil. Um deles é a instrumentalização política da fé. “Sempre temos dois perigos da relação religião-política: primeiro é a politização da fé, quando os teólogos usam da fé para fazer política; e temos o outro perigo que é a sacralização da política ou a teologização da política, quando políticos instrumentalizam a fé para seus fins próprios. Esses dois perigos estavam muito presentes. Tanto que durante seu trabalho como prefeito da Doutrina da Fé, ele emitiu um documento sobre o comportamento dos católicos na vida política. Isso claramente se aplica ao Brasil”. Trata-se da ‘Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política’.
Outro aspecto, disse, é a preocupação de Bento XVI com “o crescimento das seitas, o avanço evangélico, o avanço pentecostal”, uma “fragmentação do cristianismo”. “Essa era uma das preocupações muito grandes que ele tinha com a América Latina”, disse.
“Tanto que ele conta que ele recebeu – acho que foi da América Latina, ou da África – um grupo de bispos que recebeu a seguinte mensagem: a Igreja tinha dado toda assistência para comunidades originárias, deu toda estrutura social, hospitais, orfanatos, e essas pessoas chegaram para os bispos e disseram ‘senhores bispos, somos muito agradecidos por tudo que a Igreja Católica fez por nós, por todo trabalho social, mas estamos nos tornando evangélicos’, e perguntaram por que, ‘porque os evangélicos nos falaram de Jesus Cristo’. Então, Ratzinger conta essa história e está muito preocupado com o abandono do catolicismo e com o crescimento pentecostal, das seitas”, completou.
Encontros pessoais com Bento XVI
Rudy de Assunção teve a oportunidade de se encontrar pessoalmente duas vezes com Bento XVI, já depois da renúncia do papa em 2013. O primeiro encontro foi em 2014, na biblioteca do mosteiro Mater Ecclesiae, onde Bento XVI vivia. Rudy estava acompanhado de sua mulher e de seu único filho na época, “Bento José. O nome já denuncia a afeição”, brincou.
Ele recordou que esse “foi um encontro mais privado”. “Abriu a porta e ele estava em pé no meio da biblioteca e ele foi extremamente afetuoso. Estava muito debilitado, estávamos há um ano e pouco da renúncia, muito magro, passos curtos e lentos. Mas, eu pude ver ali algo que se dizia muito dele, que seu olhar era muito vivo, atento”, contou. “Todos me perguntam o que eu perguntei para ele. Eu digo que não perguntei nada para ele, porque o que eu preciso saber sobre ele está nos livros. E ele perguntou sobre mim, minha família, olhava para meu filho com atenção. Ele citou de cabeça sobre uma carta que enviei para ele falando do meu tempo de seminário”, disse. Para Rudy, “foi um encontro extremamente espiritual. Aquela sensação de que estava diante de uma pessoa que fala de Deus mesmo sem falar. E ele ainda falava bem , sua voz era audível”.
O segundo encontro foi em 2018. Rudy estava acompanhada de sua mulher, de três dos quatro filhos que tem hoje, um grupo de uma editora e o arcebispo emérito de Aparecida (SP), cardeal Raymundo Damasceno Assis. Aconteceu no Jardim Vaticano, próximo à gruta de Nossa Senhora de Lourdes. “Ali, ele foi colocado no banquinho e recebia cada um dos grupos. Ele já não tinha praticamente mais voz, a voz era inaudível. Mas, sempre chamo atenção para uma coisa, ele escutou todo mundo, viu todo mundo”, lembrou. Rudy contou que tem fotos do papa olhando para cada uma das pessoas. “Ele deu um olhar profundo e demorado para cada um. Não éramos um a mais. Cada um foi especial para ele em algum momento. Embora com mais gente, foi a visita mais silenciosa, ele falou menos”.
Para Rudy, tirando seu casamento e o nascimento de seus filhos, “essas duas visitas são os momentos decisivos da minha vida, porque ali vi confirmada uma vocação muito particular que Deus me deu de promover a obra dele. Perto dele, eu não sou nada, mas com esse nada que eu tenho, tento oferecer o muito que ele ofereceu, que nos faz olhar Jesus Cristo e sua Igreja com olhar amoroso”.
Fonte: ACI digital
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